Como Olho para meu Prato Hoje

Gisela Eggert - Steindel¹

1. PRIMEIRAS PALAVRAS

Venho de uma família de agricultores, minha família vive há mais de cem anos nas terras imperais de um dos dotes da Princesa Isabel e do Príncipe consorte Conde D’Eu, precisamente hoje, no século XXI, Jaraguá do Sul – nordeste do Estado de Santa Catarina. Esta frase introdutória não se reporta a uma construção de superioridade, mas quer assinalar que somos uma família de imigrantes que veio ao Brasil e aqui se instalou lá nos 1800 por meio de políticas imperiais de colonização e de branqueamento do Brasil escravizado e genocida dos povos indígenas que, nesta região e demais partes desse Estado, foram preconceituosamente denominados pela historiografia e população local de “índios botocudos”.

Minha ligação com a terra se dá desde sempre, mas inscrita num cenário brasileiro de debanda à cidade, lá nos anos de 1980, me tornei uma profissional do mundo urbano – com formação em biblioteconomia e documentação, professora do campo; ensino os estudantes, mulheres e homens, a amar o mundo do livro, o mundo do conhecimento.

A terra dos meus antepassados, que piso ainda hoje, na criancice e na adolescência era geradora de sentidos e sentimentos de inferioridade. A agricultura, não somente na nossa cidade como no Brasil, era compreendida como atividade ou ocupação e não uma profissão. Esse estado simbólico de todo não está banido, mas, a partir da Constituição de 1988 no país, se passou a construir e denominar aqueles e aquelas que trabalham na terra como agricultores e agricultoras.

Na esteira desta minha breve apresentação pessoal-profissional, o objetivo deste texto é na forma escrita compartilhar com leitores e leitoras minha participação na Comunidade que Sustenta Agricultores (CSA), Sítio Saraquá – Município de Angelina, cidade que integra a Grande Florianópolis (SC) –, mais especificamente narrar como o título sugere: Como Olho para meu Prato hoje, isso circunscrito à minha participação no curso “CSA – Comunidade que Sustenta a Agricultura – no II Ciclo de Formação em Práticas Comunitárias”, de agosto a dezembro de 2022. O conteúdo deste texto margeia minha adesão à Comunidade, delineia o Sítio, o meu conhecer sobre a CSA, Sitio Saraquá, e minha descoberta: Agricultura – agricultor(a) e meu prato.

2 ADESÃO À COMUNIDADE QUE SUSTENTA A AGRICULTURA – SÍTIO SARAQUÁ

O Sítio está sob a responsabilidade da Tânea e do Vitor e, como é possível conferir no site, “[…] produzem alimentos orgânicos certificados, além de seguirem e promoverem os princípios da agroecologia […]” (<https://saraqua.com.br/>).

A cidade de Angelina dista cerca de 80 Km da capital catarinense, é de lá que vem a cada semana os nossos alimentos cultivados no sítio ou adquiridos por meio de parcerias que Vitor e Tânea mantêm. Este ir e vir do Vitor a cada semana me lembra as práticas de venda de verduras na cidade pelo meu pai, em Jaraguá do Sul, nos idos anos de 1970/80. Como lá, nos tempos do meu pai, o dia da entrega dos alimentos nos pontos em Florianópolis – Centro, Itacorubi e Campeche (sul da ilha) –, é precedido por toda uma cadeia: colheita, higienização, seleção, empacotamento, ou seja, um processo trabalhoso e repetitivo. A vida do(a) agricultor(a) é de sol a sol, chuva a chuva.

Diferente do trabalhador urbano, não tem fim de semana ou hora demarcada para os  trabalhos. Por outro lado, há um descontínuo, o sol e as chuvas marcam o passo a passo do seu trabalho.

Vivenciei a lida da roça, uma agricultura de subsistência e familiar, com meus pais, irmãs e irmão até próximo aos 18 anos, para depois ingressar em curso superior e viver no ambiente urbano até hoje. Pude experienciar, por volta de 1975, a passagem da prática de uma agricultura sem agroquímicos à prática do plantio em grande escala – a monocultura da batata, do tomate, do pimentão e da banana. Esse tipo de agricultura foi introduzido em Jaraguá do Sul por famílias nipônicas que arrendavam muitas terras e contratavam mão de obra temporária para plantio, manutenção e colheita. Para o meu pai, assim como muitos da região com filhos que foram para cidade, a adoção da monocultura também foi uma solução para driblar a falta da mão de obra familiar. No nosso caso, todas nós mulheres, e também meu irmão, migramos para a cidade e meu pai continuou sua lida de agricultor e na agricultura de pequena escala, passando a usar adubos químicos e defensivos agrícolas adquiridos na cooperativa local ou nas ditas agropecuárias.

Como dito em outro momento, minha ligação com a terra se deu desde sempre e, recentemente, retomamos idas e vindas ao sítio da minha mãe para possíveis plantios, adotando práticas agroecológicas e mudando modos de plantar como, por exemplo, não mais arar a terra como preparo, mas adotando o plantio direto e uso de adubo verde para regenerar a terra exaurida pelos defensivos agrícolas, usados na plantação de bananas por meu pai em seus últimos anos de vida. Conhecer a CSA foi um MARCO de uma conscientização do quanto meu pai e nós fazíamos tudo sozinhos: o plantio, a colheita, o preparo e a venda de tudo aquilo que se plantava.

A engenharia social CSA a cada dia me coloca em contato com meu passado de agricultora lá de outros tempos e, por outro lado, me conscientiza, no presente, que tudo aquilo com o que me alimento tem a terra, o ar, a água, o sol. Todos esses elementos juntos produzem, como aprendi na CSA, resíduo, dito em outras palavras, produz registro, história, lições e possibilita planejar futuros.

3 UM MUNDO A CONHECER: CSA

Ingressei na Comunidade que Sustenta a Agricultura há quase um ano – mas ouvi sobre essa organização lá por 2018, ou mesmo antes por meio da minha irmã gêmea, que atua no campo da nutrição e desde 2019 é participante ativa CSA Sitio Saraquá. Incialmente, apenas ouvia relatos sobre a dinâmica, isto é, a cada terça-feira ela tinha um compromisso com o grupo na organização e na partilha propriamente dita. Foi somente em 2021, no segundo semestre, que me associei com apenas uma cota e fui aos poucos me inteirando e querendo saber como funcionava, qual a abordagem política, etc.

Enquanto co-agricultora que retirava sua cota a cada semana, de modo muito lento fui compreender o conceito CSA, as práticas comunitárias no dia das partilhas e nos ditos encontros no sítio – mutirão, dias de campo/festas. Um passo importante foi o convite para participar do coração dessa CSA, ou melhor, no grupo da coordenação. Neste lugar a dimensão é outra, o espaço de construção cotidiana é radicalmente diferente. O núcleo coração, como a expressão já aponta, traz e movimenta os bastidores da CSA, é lá que fica patente a complexidade dessa engenharia social. Se, por um lado é simples, por outro mostra a força presente no conhecimento que cada integrante do núcleo traz, imprime e compartilha para que a partilha aconteça a cada semana. Mas não só isso, explicita a complexidade que é fazer agricultura: o plantar e colher e como organizacionalmente o produto chega ao prato do co-agricultor, na linguagem CSA.

Nessa trilha iniciada, o mundo CSA foi mais uma vez ampliado com a inscrição no curso “CSA – Comunidade que Sustenta a Agricultura – no II Ciclo de Formação em Práticas Comunitárias”, já citado. Um mundo novo CSA que possibilitou revisitar um outro mundo esquecido de filha de agricultores familiares. À medida que o curso foi avançando, desfilava diante de mim muitas cenas dos trabalhos agrícolas da minha família, a forma laboral solitária do plantio, a observação das condições climáticas, a apreensão e o cuidado até a venda da plantação de milho, arroz, ou mesmo a venda de animais – o dia a dia do trabalho sol a sol, chuva a chuva. O que vivia naquele momento
era o que até então não tinha compreendido, o ensinamento de Rudolf Steiner (1924) ao dizer que “A agricultura é o fundamento de toda cultura, tem a ver com todos” e após a leitura da obra de Virginia Mendonça Knabben (2017), Ana Primavesi: histórias de vida e agroecologia, quando tacitamente afirma que “O solo é o Alfa e o Ômega” de tudo. A partir disso compreendi que o meu prato tem muita vida, como passo a narrar na próxima seção.

4 COMO OLHO PARA MEU PRATO HOJE

Estava imersa no curso e já quase finalizando quando foi proposto que cada participante elaborasse ou escrevesse um texto no formato de trabalho de conclusão de curso, e em um estalo veio a mim – “Eureka” Como Olho para meu Prato Hoje, uma percepção a qual nunca havia dado nome e um entendimento – Quem, O que, Como e Onde começa meu prato. Eu, filha de agricultores, não tinha em mente minha percepção do processo e do mundo sobre aquilo que me alimentou e alimenta. EMOCIONANTE essa percepção.

Em um processo de rememoração, voltei às terças-feiras e sextas-feiras, mas não sem antes lembrar que nas segundas-feiras (entre 12h e 15h e, quando preciso, no fim da noite) todos nós, filho e filhas, que ainda estavam na agricultura, éramos responsáveis por higienizar e selecionar os tomates, pimentões, etc… para serem acomodados em caixas para, no dia seguinte, meu pai entregar nas casas (devidamente definidas) na cidade.

Na mesma esteira, participantes da CSA Sítio Saraquá, às terças-feiras, quando nossos agricultores vêm para a cidade – distribuem em cada ponto de partilha: Centro, Campeche e Itacorubi os cultivos –, estou ciente Quem, O que, Como e de Onde vem aquilo que coloco no meu prato e no prato da minha família – e retomo neste saber o sabor de uma agricultura pautada nos 10 Princípios CSA: ajuda mútua; diversificação da cultura; aceitação de alimentos da época; APREÇO e não preço – um capítulo à parte; criação e aprofundamento de relações de amizade; distribuição independente (autodistribuição); organização compartilhada (gestão); aprendizagem mútua (torna a vida mais leve); manter tamanho apropriado com cultivo e consumo local que promovem uma estabilidade e dignidade para os AGRICULTORES e aqueles que adquirem seus cultivos. Dito de outro modo, teoria e prática,  prática e teoria, são movimentadas por pessoas e reverberam um meio ambiente equilibrado – vida com saúde.

5 UM FINAL PARA ESTE ESCRITO

O objetivo deste texto era compartilhar com leitores e leitoras minha participação na Comunidade que Sustenta Agricultores (CSA), Sítio Saraquá, e mais especificamente narrar como olho para meu prato hoje, atenta à minha participação no curso “CSA – Comunidade que Sustenta a Agricultura – no II Ciclo de Formação em Práticas Comunitárias”, realizado de agosto a dezembro de 2022.

Ao dar uma redação finalizante, mas não esgotada, quero acrescentar que, para além de outro entendimento àquilo que faz parte do nosso “se alimentar” na minha família, os ensinamentos CSA’s refletem-se ainda na diminuição da produção de lixo doméstico seco (menos embalagens), aproveitamento mais variado dos cultivos, menos desperdício. Mesmo que sempre tenha prestado atenção a esse quesito por herança cultural, em muito qualifiquei com este modo de fazer no meu dia a dia.

O tempo, nas palavras de Raduan Nassar, é um pomo exótico distribuído equitativamente entre todos e tudo. Na agricultura o tempo é a justa medida para plantar, colher, preparar e alimentar. O tempo traz diferentes culturas no seu tempo e por isso mesmo nos proporciona mais saúde e alegria de viver. Por fim, mas muito importante lembrar, cabe refletir que comida é saber, sabor e memórias.

FONTES BIBLIOGRÁFICAS (IMPRESSAS & DIGITAIS)

NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
KNABBEN, Virgínia Mendonça. Ana Primavesi: histórias de vida e agroecologia.
2.ed. ampliada. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
PRIMAVESI, Ana. Manual do solo vivo: solo sadio planta sadia ser humano sadio.
2.ed. revisada. São Paulo: Expressão popular, 2017.
SÍTIO SARAQUÁ. Disponível em: <https://saraqua.com.br/>. Acesso em: 18 jan. 2023.

¹. Co-agricultora CSA Sítio Saraquá – Angelina, Estado de Santa Catarina.

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